quarta-feira, 21 de novembro de 2007

América Andina, onde o tempo parece ter parado

Edward Martin é um boliviano que vive no Peru. Ele é proprietário e chef de cozinha do Cocahvi Restaurant, no centro de uma cidade às margens do lago Titicaca, a 3.827 metros de altitude em relação ao nível do mar. Pele clara e feições européias distinguem Edward da grande maioria de seus conterrâneos, bolivianos descendentes de aymarás. Sua esposa, a peruana Rossana Revollar, também não traz no corpo as características físicas do povo quéchua, que habita o Peru e representa o que restou do Império Inca.
O que assemelha este casal ao composto orgânico formado nas cidades desses dois países da América do Sul é a grande vocação que bolivianos e peruanos têm para o comércio. Edward e Rossana já viveram na Jamaica, conhecem o Brasil e outros países da América Latina, mas optaram por ganhar a vida com o restaurante de comidas tipicamente andinas. Assim como eles, toda a população residente de Puno, a cidade à beira do lago, vive do comércio.
Foi neste lugar que a viagem em que eu e meu amigo, Maurício Haas, havíamos dedicado quase um ano de planos, teve seu destino abreviado. Dos quase três meses iniciais passamos a trabalhar com a idéia de apenas três semanas. Tudo aconteceu depois que conhecemos o pai de Rossana, Wilbert Revollar. Engenheiro, nascido em Cusco e que há muito tempo vive em Puno, Wilbert fez questão de esboçar um roteiro para os dois brasileiros que acabaram de chegar a seu restaurante. De Puno a Cusco seriam quatro dias de esforços. De bicicleta deixaríamos o lago Titicaca para subir até La Raya, a 4.314 metros de altitude, antes de chegar a Cusco, um pouco mais abaixo (3.400 metros).
Até então tudo bem. Estávamos um pouco abatidos pelo soroche, ou o Mal da Altitude, que nos causou dores de cabeça, dores de ouvido e um interminável cansaço, mas dentro das expectativas. O grande problema, de acordo com Wilbert, estava na etapa seguinte. De Cusco até Nasca, já no litoral peruano, havia um trecho pouco habitado, local em que integrantes remanescentes do grupo Sendero Luminoso – movimento estudantil criado na década de 1960, com o objetivo de instituir um regime revolucionário e comunista de base camponesa – ainda praticava algumas ações. “É uma região muito perigosa”, alertou Wilbert.
Como a falta de conhecimento é a grande geradora da ignorância, passamos a ignorar a possibilidade de um encontro com os membros do Sendero Luminoso. O senhor Revollar continuou com seus conselhos. De Nasca a Arequipa, contornando o oceano Pacífico em direção ao Sul do Peru, haveria mais problemas. Regiões desérticas e montanhosas, com muita neblina vinda do mar. “Deixem as bicicletas em minha casa e façam o caminho até Cusco em um ônibus”, sugeriu. Foi o que fizemos.
Mas antes de narrar o fim dessa viagem, é importante documentar toda a experiência vivida dentro da Bolívia e do Peru.

Bolívia: o mercado público secular
Partimos de Balneário Camboriú no dia 1º de agosto com destino a Campo Grande (MS). Durante a viagem conhecemos Rivandro do Nascimento, que embarcou em Curitiba com destino a cidade de Cacoal, em Rondônia. Rivandro faz esse trajeto uma vez a cada quatro meses, para tratar uma grave doença no coração. Encontrou a esperança de cura através de um médico cubano que atua no Sul do Brasil. “Se tudo ocorrer como esperado, estou curado em dois anos”, repete a frase que ouviu do médico horas atrás.
Percorremos os 1.200 quilômetros em 20 horas e na chegada a capital sul-mato-grossense estranhamos o calor de 32ºC e o clima seco do cerrado brasileiro. Pela janela do ônibus a paisagem já havia mudado. Do litoral catarinense repleto de morros cobertos pela mata atlântica, passamos a viajar por um grande planalto em que as rodovias quase não apresentam curvas. Linha reta de asfalto cortando plantações e fazendas a perder de vista.
No dia 3 de agosto entramos na Bolívia. Cambistas e taxistas cercam os turistas logo na entrada. Como quase não há indústrias, a população sobrevive do comércio e de serviços prestados aos visitantes. Na cidade de Puerto Quijarro embarcamos no Trem da Morte. Vagões antigos puxados por uma locomotiva que não ultrapassa 20 km/h de velocidade. Nesse ritmo foram necessárias 22 horas para vencer os 600 quilômetros que separam a fronteira do Brasil e a cidade de Santa Cruz de la Sierra.
A viagem nos possibilitou saber dos próprios bolivianos o que acham do governo de Evo Morales. Em Santa Cruz de la Sierra, cidade considerada a mais industrializada da Bolívia, as respostas foram unânimes: o presidente seria um plantador de coca e agitador político que estaria utilizando-se da população pobre para fortalecer seu governo. Edward Martin, que há tempos vive no Peru, tem uma opinião mais neutra da situação. “Morales está sustentando as cidades mais pobres com o dinheiro das mais ricas”, comenta. “Isso gera a insatisfação da população de cidades como Santa Cruz de la Sierra”, avalia.
“Já em La Paz e em Potosí, por exemplo, Evo Morales é muito bem visto e tem grande influência”, continua o boliviano. “Para quem passava fome, receber um litro de leite por mês é mais do que fizeram os governos passados”, propõe. Realmente, em La Paz a população afirma que o presidente está fazendo um excelente governo e que Morales conseguiu pôr fim a grande dominação que os países vizinhos vinham aplicando sobre a Bolívia. Eles se referem ao Brasil e ao Chile que exploram o gás boliviano, mas a cultura imperialista vem de muito tempo, desde que a Espanha e Inglaterra arrancaram quase toda a prata que havia em Potosí. “Hoje”, lembra Edward, “ainda há muita prata naquele lugar, mas se abrirem mais um buraco lá, a montanha vem a baixo”. No dia 6 de agosto, aniversário de Independência da Bolívia, estávamos em La Paz, cidade sede do governo. Mas Evo Morales, acompanhado do presidente venezuelano Hugo Chávez e do argentino Nestor Kirchener, preferiu discursar em Santa Cruz de la Sierra. Fortalecer os ideais nacionalistas onde o governo perde forças para o capital estrangeiro, provavelmente foi o propósito de Morales.

Órfãos de Pachamama

“O Peru sofre, em média, três abalos sísmicos por ano”, afirmou o guia Mario Calisaya tendo como cenário a cidade inca de Machu Picchu. O que ele não sabia, e nem tinha como saber, era que em quatro dias um terremoto de 7.9 pontos na escala Richter (que vai até 9 pontos) causaria a morte de mais de 500 pessoas e destruiria a cidade de Pisco, na província de Ica, litoral peruano. Se Wilbert Revollar não nos tivesse feito mudar de idéia em relação à viagem de bicicleta, estaríamos por perto no momento em que tudo aconteceu.
Conhecedores da região e habituados com a idéia de tremores de terra, os Incas desenvolveram um método para minimizar os estragos causados pelos terremotos. Os famosos muros construídos com imensas pedras e que davam sustentação para as edificações, iniciavam com uma base de pedras pequenas, que se acomodariam mais facilmente durante os tremores e amorteceriam o impacto. Em Moray, no Vale Sagrado, há outra prova da tecnologia empregada por este povo.
Circunferências concêntricas se elevam em degraus entre as montanhas no local em que seria um centro de estudos agrários. Em cada nível há uma condição de temperatura e incidência da luz solar diferenciada, o que determina o ambiente propício para o cultivo de diversos alimentos. “Mas nada pode ser afirmado com precisão, porque a cultura inca foi destruída sem que se tomasse conhecimento de suas experiências”, lembra o taxista Rubens Ylla Mesa, descendente do povo quéchua e nativo de Moray.
Machu Picchu impressiona. Uma cidade construída em pedra no alto de uma montanha no meio da floresta amazônica. Mais do que isso, um local que foi abandonado entre 1.400 e 1.500 de nossa Era, sem motivos conhecidos. Uma cidade planejada e construída para receber famílias nobres. Trabalhadores de Cusco lapidaram pedras por 70 anos para dar forma ao que se transformou em julho de 2007, em uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno.
O status da cidade atrai muitas pessoas. No dia em que visitamos a cidade havia outros 3.500 turistas. De acordo com o guia Calisaya, alguns meses atrás a cidade chegou a receber 4.500 pessoas em um dia. “Período de férias no hemisfério norte”, justifica. Mas não é somente em Machu Picchu que se pode observar a grandeza das obras incas. Em todo o Vale Sagrado há muito que ser visto. Cidades como Pisaq e Chinchero, o complexo religioso em Ollantaytambo e a fortaleza de Saqsaywaman.
Mas tudo tremeu. O país tremeu no dia 15 de agosto de 2007, e os prédios de Pisco desabaram. O povo que vive quase que exclusivamente das ruínas de um império que deixou de existir há mais de 500 anos, outra vez se viu entregue aos temperamentos de Pachamama, a grande mãe Terra.
(matéria publicada na edição 3710 do Jornal Município Dia-a-Dia de 31 de agosto de 2007)